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Imunidade tributária e responsabilidade solidária: imóveis sob a posse de entes públicos

A exploração do complexo sistema tributário brasileiro, especialmente em casos de imóveis privados sob posse de entidades públicas, apresenta desafios significativos. Este artigo visa a elucidar a imunidade tributária recíproca e as nuances da responsabilidade solidária entre os proprietários privados e as instituições públicas, fornecendo orientações precisas para uma compreensão clara dessas questões.

Imunidade tributária recíproca: barreira contra impostos

  • Conceitos, fundamentos e alcance

A imunidade tributária, profundamente integrada às estruturas sociais e econômicas ao longo da história, começou como um mecanismo de distinção social e política, beneficiando exclusivamente certas classes ou grupos que eram isentos de contribuir para os cofres públicos. Essa prática, longe de ser um mero detalhe técnico, refletia as dinâmicas de poder e as hierarquias estabelecidas na sociedade, demonstrando as disparidades entre os diferentes classes sociais. Nesse sentido, leciona Santos Júnior:

“Ao longo da história a imunidade tributária surgiu como um privilégio. Primeiro aos nobres, depois aos clérigos, as castas ditas superiores foram se eximindo do pagamento de tributos restando para os pobres tal sofrível incumbência. Assim foi com os escravos, os derrotados em guerras, os vassalos feudais, até que, pouco a pouco, com o surgimento e consolidação do liberalismo, houve uma verdadeira democratização das imunidades.” (SANTOS JÚNIOR, 2011)

Com o surgimento do liberalismo e a evolução das ideias de justiça e equidade, começou-se a revisão e a democratização da imunidade tributária.[1] Os princípios liberais de igualdade perante a lei e o combate aos privilégios hereditários ou de classe levaram à reformulação das leis tributárias, visando a uma distribuição mais justa do ônus tributário.[2]

Hoje, a imunidade recíproca é decorrente do pacto federativo, previsto no artigo 18 da Constituição, e garantida pelo artigo 150, VI, ‘a’ da Constituição, in verbis:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é  vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

(…)

VI – instituir impostos sobre: (Vide Emenda Constitucional nº 3, de  1993)

a) patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros.

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A imunidade recíproca protege entes públicos contra a imposição de impostos por outros entes. Contudo, estende-se essa proteção apenas a impostos, não abrangendo taxas ou contribuições, conforme inciso VI, do artigo 150, da Constituição. [3]

O termo “tributo” é mais amplo e serve como uma categoria geral que inclui todas as formas de arrecadação compulsória de valores pelo Estado para financiar suas atividades. A definição de tributo é dada pelo Código Tributário Nacional (artigo 3º, do CTN). No contexto tributário, os termos “imposto”, “taxas”, “contribuições” e “tributo” estão interrelacionados, mas têm significados distintos, que são fundamentais para a compreensão da aplicação jurídica nestes autos.

Compreendendo as diferenças acima citadas, é indispensável reler o inciso VI, do artigo 150, da CRFB/88. Ao volver seus olhos sobre este dispositivo, perceberá que houve a exclusão constitucionais das taxas ou das contribuições para o benesse da imunidade recíproca, que já foi tema reafirmado quando na edição da antiga Súmula nº 324, do Supremo Tribunal Federal, ainda aplicável após a CRFB/88. [4]

No âmbito de imóveis de propriedade, domínio ou posse de instituições públicas, essa proteção constitucional impede o surgimento da cadeia tributária do IPTU em face dos entes. Contudo, é importante notar que este dispositivo constitucional não se aplica a taxas ou contribuições, o que reafirma o compromisso do sistema tributário com a especificidade e a justiça na aplicação dos tributos, conforme clarificado repetidamente pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

  • Considerações para proprietários privados

Essa imunidade é particularmente relevante para proprietários de imóveis sob posse de instituições públicas. Importante ressaltar que esta proteção constitucional, conforme decisões reiteradas do Supremo Tribunal Federal, não se aplica a taxas ou contribuições, demandando uma gestão fiscal atenta e responsável por parte dos municípios e proprietários privados.

A relevância desta prática decorre do fato de que, embora o imóvel não seja de propriedade do ente público, ele é utilizado pelo mesmo para alcançar suas finalidades públicas. Segundo o artigo 32 do Código Tributário Nacional (Lei nº 5.172/1966), o IPTU é um imposto de competência municipal que incide sobre a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel, situado em zona urbana definida por lei municipal. [5]

Nesse contexto, aquele que detém o domínio útil ou a posse do imóvel é considerado contribuinte do IPTU. Ou seja, caso a instituição pública esteja sob a posse do bem privado, com base no artigo 32 do CTN, a ele competirá consta como contribuinte do IPTU do bem, o qual não pagará IPTU pela ausência do fato gerador, em cumprimento da imunidade tributária prevista na Constituição, no seu artigo 150, VI, ‘a’.  Assim, é crucial que esses proprietários informem proativamente a situação fiscal do imóvel ao órgão tributário municipal competente, a fim de assegurar a correta aplicação constitucional.

Responsabilidade dos tributos excluídos da imunidade recíproca: uma faca de dois gumes

  • Exploração dos conceitos

Pelo artigo 124 do Código Tributário Nacional (CTN), pode-se atribuir a responsabilidade pelo pagamento de tributos a mais de uma pessoa, de forma solidária. Segundo o artigo 77 do CTN, as taxas têm como fato gerador o exercício regular do poder de polícia, ou a utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição. Destaca-se que existem diferentes tipos de taxas, mas vou discorrer sobre a taxa de lixo, por ser esta mais a taxa mais usual.

Já o artigo 81, do CTN, dispõe que as contribuições, que podem ser cobradas pela União, pelos estados, pelo Distrito Federal ou pelos municípios, com o seguinte objetivo: “(…) é instituída para fazer face ao custo de obras públicas de que decorra valorização imobiliária (…)”. Ao mesmo tempo, desde 2002, recente acréscimo à Constituição, no artigo 149-A, permite que “os Municípios e o Distrito Federal poderão instituir contribuição, na forma das respectivas leis, para o custeio, a expansão e a melhoria do serviço de iluminação pública e de sistemas de monitoramento para segurança e preservação de logradouros públicos”. Considerando que trata-se de uma espécie tributária mais comum, restrinjo a escrita à contribuição de custeio de iluminação pública (Cosip).

Além de os municípios poderem cobrar contribuições em razão de alguma obra pública, a CRFB 88 permite que também se possa cobrar em razão de serviço de iluminação pública. Isso aconteceu porque antes os municípios cobravam o serviço de iluminação pública por meio de taxas, mas as cobranças começaram a ser questionadas judicialmente, e o Supremo Tribunal Federal estabeleceu que “o serviço de iluminação pública não pode ser remunerado mediante taxa” — Súmula Vinculante nº 41. [6]Esse entendimento do STF, de certa forma, obrigou os municípios a adequarem a via legislativa correta de cobrança do serviço de iluminação pública, assim como estimulou o congresso a produzir o novo artigo 149-A da CRFB 88.

É habitual nas legislações municipais prever que a propriedade, o domínio útil ou a posse de um bem imóvel constituam o fato gerador para a taxa de lixo e a Cosip, ou ainda, a pessoa física ou jurídica que possua ligação regular e privada ao sistema de fornecimento de energia elétrica, residencial ou não residencial, beneficiária, direta ou indiretamente, do serviço de iluminação pública.

Nesses sentidos, dispõe o Decreto n° 31.918, de 25 de fevereiro de 2010, da cidade do Rio de Janeiro; a Lei nº 5.114, de 2015, da cidade de Muriaé (MG); a Lei nº 2802 de 19 de outubro de 2021, de Manaus (AM); o Decreto nº 32.120, de 31 de janeiro de 2020, de Salvador (BA); e a Lei Complementar nº 047, de 30 dezembro de 2002, de Natal (RN).

Com relação à taxa de limpeza pública, Amaro (2021) ensina que “o fato gerador da taxa não é um fato do contribuinte, mas um fato do Estado. O Estado exerce determinada atividade e, por isso, cobra a taxa da pessoa a quem aproveita aquela atividade”. [7] Ou seja, o exercício da coleta de lixo, atividade pública, é o ato constituinte da obrigação tributária. E consequentemente, quem caracteriza-se como contribuinte da taxa é aquele que se beneficia com aquela atividade pública.

Assim, acaso não tenha ocorrido nenhum pacto entre a pessoa privada e o ente público sobre a responsabilidade de pagamento tributário da taxa de lixo e Cosip, e ainda, se a legislação municipal dispor que o fato gerador de tais tributos seja a propriedade, o domínio útil ou e a posse de bem imóvel, surgirá a possibilidade jurídica de a responsabilidade sobre esses pagamentos serem do entes públicos, a priori.

A hipótese acima citada não se dá em razão da imunidade tributária, mas em razão da previsão da lei municipal que atribui como contribuinte aquele que tenha posse, domínio útil do bem imóvel, ou ainda, seja a pessoa beneficiada pelo serviço público, tanto de coleta de lixo, quanto de iluminação pública. Mas note, a base legal não é a imunidade recíproca, mas a lei municipal.

Ocorre que, pelo fato da propriedade ser de particular, é possível que a administração municipal opte por manter no cadastro de contribuinte de taxa de lixo e Cosip tanto o proprietário quanto o ente público, com base no possibilidade contida no artigo 124 do CTN, in verbis:

Art. 124. São solidariamente obrigadas:

I – as pessoas que tenham interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal;

II – as pessoas expressamente designadas por lei.

No caso do ente público está sob a posse do imóvel privado, nas duas hipóteses de solidariedade previstas no CTN dá permissibilidade jurídica de o ente municipal, atribui responsabilidade solidária entre o proprietário e o ente público, o qual vai depender, também, as disposições legais municipais, conforme prevê o inciso II, do supracitado artigo do CTN.

  • Entendimento do Tribunal Administrativo Tributário

Sob minha relatoria, surgiu um caso que versava sobre esta temática, no âmbito do Tribunal Administrativo Tributário de Natal (RN). O processo, que é público, [8] envolveu uma disputa tributária sobre o Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU), a taxa de lixo e a Contribuição para o Custeio do Serviço de Iluminação Pública (Cosip) em relação a um imóvel cedido ao estado do Rio Grande do Norte. O reclamante argumentou que, dado que o imóvel estava sob posse do Estado, deveria beneficiar-se da imunidade tributária recíproca, isentando-o de tais tributos.

O Tribunal Administrativo de Tributos Municipais decidiu parcialmente a favor do reclamante. Reconheceu a imunidade tributária recíproca para o IPTU, isentando o imóvel de impostos enquanto sob posse estatal. No entanto, a decisão afirmou que a imunidade não se estende a taxas ou contribuições, como a taxa de lixo e Cosip. Mas ao avaliar a legislação local, especificamente, o tribunal determinou que:

  1. a) O IPTU não é cobrado do imóvel enquanto sob posse do Estado, reconhecendo a imunidade recíproca.
  2. b) A responsabilidade pelo pagamento da taxa de lixo e Cosip recai sobre o possuidor do imóvel a qualquer título, que neste caso continua sendo o Estado, conforme as disposições locais e a legislação aplicável.

Esta decisão oferece uma orientação valiosa para situações similares, onde a posse de entidades públicas nos imóveis privados pode complicar as responsabilidades tributárias, especialmente em contextos onde os municípios exigem o pagamento de taxas e contribuições independentemente da imunidade tributária recíproca para impostos.

 

Estratégias para navegar os desafios legais

  • A importância de acordos claros

Nesse contexto jurídico complexo, é essencial compreender a maneira mais eficaz de garantir o pagamento de tributos pelo beneficiário direto do serviço. Inicialmente, deve-se verificar a legislação aplicável ao local do imóvel e formalizar adequadamente o título de posse ou domínio junto ao ente público.

É importante incluir no contrato uma cláusula de solidariedade, que preveja o ressarcimento em caso de não pagamento dos tributos pela instituição. Posteriormente, é aconselhável iniciar um processo administrativo junto ao órgão tributário municipal para formalizar a imunidade do IPTU em favor do ente público e reconhecer o mesmo como contribuinte direto para outras taxas, como a de lixo e a Cosip, conforme estabelecido pelas leis municipais e pelo acordo contratual.

Além disso, é crucial que os contratos de aluguel ou cessão de uso detalhem claramente as responsabilidades fiscais de cada parte envolvida. Com transparência e boa-fé, a equidade fiscal é assegurada, mantendo a integridade e a justiça na administração tributária do imóvel.

 

Conclusão

Diante do exposto, é evidente que a imunidade tributária recíproca e a responsabilidade solidária constituem mecanismos essenciais para garantir a justiça fiscal e a harmonia entre os entes públicos e pessoas jurídicas ou físicas privadas, na administração do pagamento do IPTU, taxa de coleta de lixo e Cosip de imóveis sob posse ou domínio de entes públicos. Para os proprietários privados de imóveis sob a posse de entes públicos, é fundamental manter uma comunicação clara e eficiente com as autoridades fiscais, além de buscar assessoria jurídica especializada para navegar pelas complexidades das leis tributárias.

Finalmente, é imprescindível que os acordos e contratos estabelecidos entre os proprietários privados e os entes públicos sejam cuidadosamente avaliados, assegurando que as obrigações tributárias sejam justamente distribuídas. Deste modo, o entendimento aprofundado e a aplicação cuidadosa das disposições relativas desta imunidade recíproca e demais tributos que não estão abrangidos por esta última, promoverá um ambiente justo e equilibrado para todos os envolvidos.

Fonte: Conjur

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