O Registro de Imóveis Eletrônico

O direito dos usuários a serviços públicos eletrônicos é uma questão fundamental na era digital em que vivemos atualmente. Com o avanço da tecnologia e a crescente digitalização dos serviços públicos, é essencial garantir que todos os cidadãos, empresas, Administração Pública e Poder Judiciário tenham acesso equitativo e eficiente a esses serviços, independentemente de sua localização geográfica ou de suas habilidades digitais, respeitadas regras pertinentes, tais como instância, legitimidade, privacidade e emolumentos.

Os cidadãos usuários estão elevados à condição de consumidores de serviços públicos, embora, tecnicamente “usuários”, com direito, além de acesso remoto, à segurança, isonomia, previsibilidade, serviços adequados, eficientes, seguros e contínuos. Dessa forma, diminuem-se os riscos inerentes aos intercâmbios pessoais econômicos, degradando imprevistos, custos e tempo.

Importante reconhecer que não é diferente com os serviços de registros públicos eletrônicos. Eles oferecem uma série de benefícios significativos para os usuários, pois proporcionam conveniência, agilidade e acessibilidade, permitindo que as pessoas acessem informações e realizem transações a qualquer momento e em qualquer lugar. Isso elimina a necessidade de deslocamentos físicos, filas e burocracias dispensáveis, economizando tempo e recursos.

A própria publicidade registral imobiliária, pressuposto fundamental para a constituição de direitos reais, indispensável para a produção dos efeitos erga omnes, exige a utilização de meios instrumentais vocacionados e estruturalmente orientados para proporcionar a comunicação do usuário com o Registro de Imóveis, para o tráfego de documentos eletrônicos e conhecimento das situações registrais decorrentes, por meio da Internet. O referido pressuposto tem como objetivo garantir a segurança jurídica das transações imobiliárias, fornecendo informações claras e acessíveis sobre a situação jurídica dos imóveis. Quando um imóvel é registrado, são inseridas na matrícula as respectivas informações como sua descrição, identificação do proprietário, eventuais restrições e ônus que recaem sobre ele, entre outras.

Qualquer pessoa pode acessar as informações registrais imobiliárias, mediante pagamento de taxas e observando as regras estabelecidas pela legislação. Essas informações são obtidas por meio de certidões que são documentos que comprovam a situação jurídica de um imóvel.

A publicidade registral imobiliária é fundamental para a segurança das transações imobiliárias, pois permite que os interessados obtenham informações precisas sobre a propriedade que desejam adquirir. Ela ajuda a evitar fraudes, permite a verificação de eventuais ônus ou litígios relacionados ao imóvel e facilita a consulta de informações relevantes para o planejamento urbano e o desenvolvimento de políticas públicas.

Em resumo, a publicidade registral imobiliária garante a transparência e segurança, fornecendo informações precisas e acessíveis sobre a situação jurídica dos imóveis.

Diante desse quadro, pode ser afirmado que um cartório com seus livros, papéis e dados guardados num cofre à prova de fogo, com possibilidade de acesso apenas de forma física durante 6 (seis) horas em dias úteis, já não cumpre o seu papel integral, na forma orientada pelo Princípio da Publicidade.

O Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (SREI) consiste no uso das tecnologias da informação para, [1] além da automatização de procedimentos internos da serventia registral, [2] entregar de forma remota, produtos e serviços registrais para cidadãos, empresas, órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública, mediante o uso de ferramentas eletrônicas que universalizam o acesso remoto, superando obstáculos de comunicação com qualquer serventia no território nacional.

As tecnologias envolvidas são as mesmas do setor público (e-Gov) e do privado de comércio eletrônico (e-business), além de outras que são específicas ou únicas em relação às necessidades próprias dos procedimentos inerentes à atividade registral imobiliária.

De modo geral, a noção do SREI está ligada à automatização dos procedimentos registrais preexistentes no papel e em cartórios ou ofícios, e a prestação do serviço público delegado por meio eletrônico, ou seja, utilizando-se recursos de tecnologia da informação, em caráter remoto e disponível 24/7, ou seja, vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana.

Assim, o Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (SREI) pode ser entendido como um sistema distribuído em duas camadas principais:

1. Camada dos Sistemas dos Cartórios (SC); e,
2. Camada do Sistema de Atendimento Eletrônico Compartilhado (SAEC).

A ideia de prestação de serviços de Registro de Imóveis com a utilização de recursos de processamento de dados – dizia-se à época, “por meios telemáticos” – foi propugnada pela mente visionária de Elvino Silva Filho, de saudosa memória, então Oficial de Registro de Imóveis em Campinas (SP). Como afirma o registrador e historiador Sérgio Jacomino:

“Qualquer um de nós, registradores ou não, que queira compreender o processo de modernização do registro de imóveis a partir da segunda metade do século XX, deve voltar-se à figura emblemática do grande registrador brasileiro, jurista de escol, presidente do IRIB, Elvino Silva Filho.
Elvino esteve presente à fundação do CINDER – Centro Internacional de Direito Registral no ano de 1972, onde integrou a comissão encarregada de redigir as conclusões da Comissão III [Conclusões da Comissão III] (veja neste link) que tratou do tema da mecanização do Registro de Imóveis. Logo em seguida, os registradores brasileiros, por intermédio da Associação dos Serventuários de Justiça do Estado de São Paulo, encaminhariam um relatório e memorial ao Ministro da Justiça e ao Corregedor-Geral de Justiça de São Paulo oferecendo sugestões para a modificação do Decreto-lei n.º 1.000/1969 “a fim de que o Registro Imobiliário brasileiro, principalmente nos grandes centros urbanos, pudesse ser feito de acordo com a conquista da tecnologia moderna, aproveitando os avanços da cibernética, e, ganhando em celeridade e racionalização”. (1)

Posteriormente, em trabalho apresentado ao II Congresso Internacional de Derecho Registral, realizado em Madri, Espanha, de 30 de setembro a 6 de outubro de 1974, Elvino Silva Filho ampliou a exposição de sua visão. Do excelente trabalho destacamos os seguintes trechos:

“E, nesta oportunidade, não poderíamos deixar de nos referir, também, à utilização de computadores, uma vez que os Registros de Imóveis, além de serem os repositórios dos imóveis e das pessoas dos titulares de direito sobre eles, devem possibilitar precisas informações sobre esses dois dados ou elementos. É, no que se constitui a informática, no dizer do Prof. Ivan Sá Motta, Chefe do Departamento de Métodos Quantitativos e Informática da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo. A informática, na definição desse Professor, ‘é o processo de transformação da informação de uma certa qualidade em outra, de qualidade mais fácil de ser utilizada’. É o que, precisamente, o Registro de Imóveis deve proporcionar.
A mecanização dos registros possibilitará, assim, no Brasil, em futuro não muito remoto, a aplicação da cibernética, mediante a utilização de computadores, para o processamento das informações sobre os imóveis e os titulares do seu domínio (…).
Ainda, para completar esse extraordinário apoio de um computador, a mecanização dos registros poderá se utilizar da microfilmagem, da qual nos referiremos mais adiante, conjugada ou não com o computador, através do sistema ‘COM’ – Computer Output Microfilm (…).
Dir-se-á que tais previsões são um tanto quanto visionárias de nossa parte, para a implantação no Brasil. Não comungamos, todavia, dessa opinião. Se o homem dispõe da máquina para a sua utilização, por que não utilizá-la para u’a maior eficiência nos seus serviços? (…).
 V — É desejável, na medida do possível, a utilização de computadores para a rapidez das informações que devam ser prestadas pelos Registros de Imóveis, sem, todavia, poder ser eliminada a contribuição do homem, no exame da validade e da legalidade dos títulos que fundamentam a transmissão do direito de propriedade.” (2)

Nessa mesma senda, durante o X Encontro de Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil, realizado de 8 a 15 de outubro de 1983, em Serra Negra, São Paulo, foi apresentado pelo registrador Antônio Carlos Carvalhaes, de São Carlos (SP), o opúsculo “A Informática no Registro Público”, publicação pioneira em colocar em pauta, no âmbito dos registradores brasileiros, as questões importantes da microfilmagem e da informática no registro público brasileiro.


Em 1984 veio um dos passos mais importantes para a informática no Brasil, a Política Nacional de Informática, etapa que veio mudar o atraso tecnológico do Brasil frente a outros países e possibilitou um grande aumento na taxa de crescimento da informática nacional, cerca de 30% ao ano, inclusive, nas serventias. Depois da abertura das fronteiras com o fim da reserva de mercado, na época de governo de Fernando Collor de Mello, que deu origem à Lei de Informática, o Brasil começou a acompanhar as mudanças tecnológicas do setor, embora com relativo atraso. Nesse interregno surgiram várias empresas de informatização das serventias.


O primeiro passo prático de aplicação decorreu de solicitação do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) à Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo, para acesso às bases de dados dos Indicadores Pessoais das dezoito serventias de registro de imóveis de São Paulo, Capital, cuja solicitação recebeu de plano o deferimento do Corregedor-Geral da Justiça.


Essa solicitação deu origem ao Pedido de Providências n. 583.00.2002.112/53-8/000000-000,  da 1ª Vara de Registros Públicos da Comarca da Capital, que por sua vez encarregou a Associação dos Registradores Imobiliários de São Paulo (ARISP) para viabilizar o deferido. Na época, travou-se denso debate entre os registradores da Capital sobre a possibilidade ou não de acesso de terceiros às bases de dados dos Indicadores das Serventias. Prevaleceu entendimento de maioria sobre a possibilidade acesso identificado por Certificado Digital, que seria emitido pela ARISP (MP 2.200-2/2001, art. 10, § 2º), às bases de dados das serventias, por meio de filtro compostos pelos números dos CPFs e CNPJs dos titulares de domínio, que passou a ser chamado de Banco de Dados Light (BDL). A opção por esse modelo deu azo à eleição de Flauzilino Araújo dos Santos para o cargo de Presidente da ARISP no ano de 2005, cuja gestão perdurou até o ano de 2015, tendo sido implantados: (1) Banco de Dados Light – BDL, (2) pesquisa para localização de imóveis, (3) certidão digital, (4) visualização de matrícula, (5) Protocolo Eletrônico de Títulos (e-Protocolo), (6) Serviço Eletrônico de Intimações e Consolidação da Propriedade Fiduciária – SEIC, (7) Penhora Eletrônica de Imóveis (Penhora Online), (8) Monitor Registral, (9) Repositório Confiável de Documento Eletrônico – RCDE, (10) Acompanhamento Registral Online, (11) Central Nacional de Indisponibilidade de Bens – CNIB, e (12) Assinador Digital Registral.


Em 2010 foi constituído um Grupo de Trabalho (GT), no âmbito da Presidência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com o objetivo de desenvolver o Projeto de Modernização dos Cartórios de Registro de Imóveis da Amazônia Legal, com o objetivo de desenvolver um projeto mais abrangente – o Fórum Fundiário.


Coordenado pelo Juiz Marcelo Martins Berthe, juiz auxiliar da presidência, e composto, dentre outros, pelo Juiz Antônio Carlos Alves Braga Júnior, também juiz auxiliar da presidência, e pelos registradores Flauzilino Araújo dos Santos e Sergio Jacomino, com a assessoria técnica da Associação do Laboratório de Sistemas Integráveis Tecnológico – LSI-TEC, uma Instituição de Ciência e Tecnologia (ICT) voltada ao desenvolvimento tecnológico, que desenvolveu as especificações do SREI – Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis, projeto custeado pelo CNJ (2009-2012).


Paralelamente, foi editada a Lei n. 11.977/2009 (art. 39) fixando o prazo de 5 anos para implantação do registro eletrônico de imóveis em todo o território nacional. A interconexão dos Registros de Imóveis e a prestação de serviços de modo uniforme e homogêneo em plataformas eletrônicas, em todo o país, ainda tardavam.


A despeito dos expressos termos da Lei n. 11.977/2009 no sentido de que “os serviços de registros públicos de que trata a Lei n. 6.015, de 31 de dezembro de 1973, observados os prazos e condições previstas em regulamento, instituirão sistema de registro eletrônico” (art. 37), essa lei não dispôs sobre a forma como os oficiais se organizariam para a prestação do serviço eletrônico compartilhado.


Diante dessa lacuna da lei verificou-se que somente um organismo, criado por lei, regulamentado e fiscalizado pelo Poder Judiciário, e que pudesse congregar todos os oficiais de registro de imóveis do território nacional, ope legis, somente assim seria possível concretizar o anseio da sociedade brasileira, expresso na norma legal, qual seja: a integração, em redes e plataformas eletrônicas de todas as unidades de registro de imóveis do país, universalizando o acesso ao serviço público delegado.


Entendeu-se que esse organismo deveria ser formado por todos os Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil e que, por preceitos legais e constitucionais, deveria estar sob a normatização, regulação e fiscalização do Poder Judiciário, no caso, a Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em virtude de suas atribuições legais e regimentais.


A ideia foi apresentada por Flauzilino Araújo dos Santos às lideranças nacionais dos registradores imobiliários, congregadas no XLIII Encontro Nacional do IRIB – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, realizado em setembro de 2016, na cidade de Salvador, Bahia.


As eleições para a presidência do IRIB seriam vencidas por Sérgio Jacomino no final do ano de 2016, ano que vigorou a Medida Provisória 759/2016. A campanha se apoiou no eixo da promoção da modernização e do aperfeiçoamento do sistema registral brasileiro.


Flauzilino Araújo dos Santos, ao lado dos desembargadores Marcelo Martins Berthe, Antônio Carlos Alves Braga Jr., além de outras figuras de relevo, foram convidados pelo Poder Executivo Federal para compor o Grupo de Trabalho denominado “Rumos da Política Nacional de Regularização Fundiária” (GTRPNRF) no âmbito do Ministério das Cidades (Portaria n. 326, de 18 de julho 2016), visando apresentar um Plano Nacional de Regularização Fundiária.


Os resultados dos trabalhos desse GT foram acolhidos na edição da sobredita Medida Provisória n. 759/2016, convertida na Lei n. 13.465/ 2017.


A MP instituiu o ONR com a finalidade de aprimorar a eficiência dos procedimentos de regularização fundiária e de seu registro público, ao tempo em que supriu a lacuna relativa à convergência dos Oficiais de Registro de Imóveis em torno de uma entidade de caráter corporativo. Referido Diploma Legal entregou ao IRIB a missão de constituir o ONR e de elaborar o seu estatuto social, submetendo-o à aprovação da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça (§ 3º, do art. 54). Lamentavelmente, esse dispositivo foi vetado, porém, foi mantida a instituição do ONR, nos termos do art. 76, da Lei n. 13.465/2017.


O Registro de Imóveis brasileiro contava, finalmente, com um marco legal, com força suficiente para implementação do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (SREI), em todo o território nacional.


O ONR representa um marco legal e institucional que dará impulso para a digitalização dos negócios imobiliários no país com a necessária segurança jurídica e tecnológica, ao tempo em que disponibiliza serviços digitais o Poder Judiciário, Administração Pública, Mercado e cidadãos.


(1)    JACOMINO. Sérgio. IRIB e o Registro Eletrônico brasileiro. Disponível em https://cartorios.org/2018/09/26/irib-e-o-registro-eletronico-brasileiro/. Acesso em 05/04/2023.


(2)    SILVA FILHO. Elvino. A unidade imóvel e a mecanização dos registros no Brasil. In [1] Revista de Derecho Registral. Buenos Aires: Cinder, 1976, n. 5, p. 93; [2] Editora Revista dos Tribunais. Fascículo 1 – Cível. Ano 64 – julho de 1975 – Volume 477, p. 34-45. Disponível em https://cartorios.org/wp-content/uploads/2018/09/1975-477-RT.pdf. Acesso em 05/04/2023.